22 novembro 2010

Primeira Passagem de Vida e Morte

Havia um fusca vermelho antigo. Com uma pintura blindada e brilhante. Um tom forte, algo chocante. De toda a história da vida era o veiculo mais rápido que eu vira passar cortando o asfalto em dois, jogando toda a terra para cima e fazendo a perder o rumo.  Sempre ficava admirado ao vê-lo desaparecer em segundos de um horizonte ao outro da rua da minha casa.
Havia uma criança. Ela corria nas tardes de sol quando ouvia o som ensurdecedor do herói vermelho e do atrito com o asfalto da tarde quente. Corria e jogava o corpo contra a sacada de três andares. Jogava o rosto ao vácuo e puxado era pelo concreto. Somente para ver o brilho avermelhado ofuscando seus olhos num picar de olhos. Em um segundo.
Quanto tempo demora pra uma gota que cai de uma garrafa a cinco metros do chão tocar a superfície e se espalhar por um mundo minúsculo como um dilúvio? Quem olharia pros lados quando o céu esta azul? Quem seria fútil a ponto de se preocupar quando o vento está sereno e confortável?  O asfalto soltava fumaça. A água banhava o corpo dos adolescentes que lavavam os carros.
Havia uma criança a esperar do lado oposto de uma garrafa de água. Havia uma pequena mosca na garrafa de água. Havia uma água nojenta caindo sobre a calçada. A criança correu da água suja que caia sobre sua cabeça. O vermelho e o atrito o assustaram e pela primeira vez quis que não o fosse. Parou. Respirou e parado no centro da rua sentiu uma dor inconfundível. Fechou os olhos abaixou um pouco o corpo no impacto auditivo. Reflexo corporal. Mas não sentia dor. Não sentia suas costas no asfalto quente. Não sentia os cortes arderem. Não havia túnel. Não havia luz.
Na calçada o pai esperava-o aflito. Sua família parada de pé sem ao menos piscar. Uma luz forte brilhou quando abriu os olhos. Viu o reflexo azul do céu. O brilho do sol refletido no pára-choque do fusca vermelho. O mesmo começava há irritar um pouco sua pele. Estava um pouco quente. Quente demais.
Havia então um fusca vermelho parado no meio da rua. Havia também uma criança parada em frente ao fusca. Havia um fusca. Havia uma criança. E essa criança era eu.

Márcio Mattos

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