02 março 2011

Liberdade e Fantasia

Alice ali deitada na cama de pernas cruzadas e de cabeça longe olhando o teto. Pensava no quanto o mundo era um lugar ruim. Não gostava das pessoas. Não gostava da cidade. Não gostava dos jardins de outono. Acreditava no caráter e no moralismo. Queria se mover. Porém era uma garota jovem. Jovem demais. Tinha a pele clara e lisa. Tinha a alma pura. Nunca havia feito nada de errado. Nunca havia tentado algo diferente. Mas ela era diferente. Mais velha do que todos os seus conhecidos. Mais madura que seus pais e mais sabia que seus avos. Era incoerente viver sobre essas circunstancias. Ela gostava de filmes de suspense e não acreditava nos escritores do amor. Lia livros bons e dignos de um velho de 60 anos. Ela não tomava nada artificial e não comia, simplesmente, nada. Água de manha no banho, à tarde no café e a noite antes de dormir. Sempre ali na sua cama. De madeira velha, como a casa, com cobertores de renda velha e cheiro de mofo. Ao seu lado na janela o vento sacudia o pinheiro do quintal. Sacudia como a vontade que a jovem menina tinha de se levantar da cama. Mas era, pra ela, tão confortável estar ali com a cabeça sobre as mãos. Descansava tão delicada que parecia calma. Sua cabeça girava como um tufão. Como seus conflitos flutuando num universo paralelo.
Alice não gostava do seu namorado. Alice não gostava de beijos, e nem tem caricias. Alice não gostava de meio de comunicação virtual. Não tinha telefone, não tinha internet, não tinha televisão no seu quarto. Alice tinha um pequeno radio velho de madeira de seu avo. Que escutava somente na hora de dormir. Alice pensou um pouco e viu que deveria se mover. Jogou as pernas para fora da cama e pôs-se sentada com as mãos sobre os joelhos. O cabelo levemente bagunçado com alguns fios caindo sobre o rosto.
Desceu as escadas com os murmúrios da família invadindo os ouvidos. Não deu atenção. Não deu adeus. Pegou um guarda-chuva e saiu pela porta da frente. Sem medo de fazer barulho. Sem importar-se com alguém que estava ali. E do lado de dentro o mesmo. Ninguém se importou quando ouviu Alice saindo do quarto. E descendo a escada e batendo a porta. Ninguém nunca havia se importado com a boca suja da menina. Ninguém nunca havia se importado com a falta de apetite e suas esquizofrenias. Aos olhos da família a menina era louca. E louca foi andando sobre as folhas que cobriam o caminho de pedra branca. Pedra solta que fazia barulho. Ela foi com a roupa do corpo. A roupa com que dormira noite passada. Nunca sorria, não abria a boca para nada. Seus olhos giravam lentamente sobre a paisagem. Parecia não conhecer aquela cidade horrível. Será que Alice um dia havia saído de casa? Caminhado pela cidade?
Alguns se vestiam bem, alguns tocavam violão na calçada. Alguns vendiam e alguns comprovam. Mesmo assim alguns roubaram. Alguns choravam e alguns eram bobos. Alguns eram feios e a maioria era hipócrita. E Alice levou o dia inteiro para chegar ao outro lado da cidade. Onde havia uma estrada cruzada por uma linha amarela.  Um homem sem camisa, de corpo jovem e semblante velho trocou o guarda-chuva de Alice por uma garrafa de água. Uma água estranha e ardente. A garota bebeu. E viu sua pele envelhecer um pouco. A partir de então a mulher continuou bebendo a água. Sem se preocupar. Um caminhão vermelho parou na beira da estrada e abriu a porta. Alice entrou e permaneceu calada ate beber a ultima gota do líquido desconhecido. O motorista, um bom homem, sorriu para Alice. Logo a mulher contou-lhe toda historia de sua vida incrível. De como nasceu e cresceu e fim. E o motorista fascinado abriu a porta para que a mulher descesse. Sem querer saber seu nome e sem contar seu nome. Sem agradecer e sem dizer uma palavra colocou seu pé no chão enquanto o cabelo voava atacando seus olhos. Olhou para cima e viu algumas desprezíveis estrelas brilhando. Com isso já sabia as horas, os minutos, os segundos e o clima. Como se estivesse em casa voltou no mesmo caminho. Adentrou a rua que abria a cidade e demorou toda a madrugada para chegar ao outro lado da cidade. Era tudo novo e diferente. Poucas pedras no caminho de casa. O pinheiro existia somente na raiz e num pequeno toco. O sol começou a nascer quando ela chegou do outro lado. A luz batia no seu rosto cansado lentamente. Não havia som, nem leves sussurros na cidade. Alice entrou com medo de fazer barulho. Subiu as escadas na ponta dos pés e achou ali no quarto uma cama de madeira podre. Um rádio queimado e um colchão com poeira. Deitou devagar. Deitou-se de lado com a cabeça sobre o braço esquerdo que deitava sobre o travesseiro. Uma lagrima escorreu quando fechou os olhos. Adormeceu devagar. E descansou.
Alice morreu na madrugada de oito de Abril. Trinta e sete anos depois de sair de casa pela primeira vez. Seu corpo não foi velado. Fez companhia a toda a poeira que jazia em cima do colchão.
Na casa antiga, na cozinha. A família comemorava mais um dia feliz. Depois de trinta e sete anos desde alguma coisa boa que havia acontecido na casa. Ninguém se lembrava mais o porquê da festa. Alguém dissera a trinta e sete anos atrás. “O dia mais feliz de nossas vidas. O dia da liberdade”.
Daniel Gualandris

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