12 dezembro 2011

Cinco Dias


Conversávamos como dois desconhecidos, o que não passava de uma verdade, relatando pensamentos e devaneios daquela domingo de outubro. Se me recordo bem havia sol naquele dia. A minha felicidade era tão grande que eu não poderia dizer com certeza se havia sol ou se meus olhos brilhavam tanto a ponto de clarear aquela cidade em ruínas pintadas de prata. Ele não emitia muitas palavras. Era para mim um mistério e talvez eu até possa chamá-lo de estranho. Contudo, em algum lugar dentro de mim crescia um ser maligno. Um ser diabólico que se formava aos poucos me dando um pouco de dor de cabeça e náuseas. E que antes de eu dormir acordava feliz dentro de mim. Pronto para sair às noites de novembro cultivando seu veneno pelo meu corpo até chegar aos pontos cruciais. Minha pouca lucidez e meu velho coração.
Dei partida em meus mais secretos desejos. Meus devaneios na cama antes de adormecer. Aquele sentimento que me mantinha acordado com os olhos fechados. Em pouco tempo aprendi a imaginá-lo ao meu lado. Como se fosse meu. Como seria tê-lo bem ali perto de mim. Como seria a textura de sua pele que para mim até então parecia ter gosto de baunilha e aroma dos setes, mais lindos, pecados. Eu imaginava cada segundo do meu toque em seus braços. Tudo me aparecia num sonho sem muito som. Alguns sussurros e o compasso de nossa respiração somente. Imaginava a pele limpa da palma de minhas mãos deslizando em seus ombros. E então o toque leve, doce e de tom rosado de nossos lábios tendo o tão desejado encontro. Sentia meu corpo leve dançando pelo ar enquanto com os olhos fechados somente para poder imaginá-lo. Em meus sonhos ele me envolvia em seus braços com astúcia enquanto nossos lábios ainda dançavam ao som das notas suaves de um piano imaginário.
Aquele abraço era o meu refugio. Ele, um homem, me abraçava parado e quieto. Nossos corpos eram simplesmente uma cópia da cópia de uma escultura antiga. O único gesto ou movimento era o batimento do coração e a respiração calma que ele deixava repousar sobre o meu rosto. Eu repousava a face em seu peito de tão pequeno que eu parecia ser ao seu lado. Seus braços me fechavam perfeitamente e eu buscava o calor de seu corpo ali dentro. Um corpo que me passava calma. Um lugar onde eu poderia me deitar em paz e repousar em sonhos. Ao som apenas da respiração. Sentindo o cheiro da sua pele, em carne, sentindo a calma do seu abraço. Era como se eu pudesse dormir para sempre ali ao seu lado. Eu acabava dormindo sozinho na minha cama sentindo sua presença mais forte do que eu poderia sonhar. Para mim ele estava ali deitado ao meu lado somente esperando que eu virasse e entregasse meu corpo ao seu para juntos sonhar.
[...] O ser que habitava meu corpo fugiu caçoando de mim. Acordei numa tarde de sábado tomado por uma insônia que me percorre a vida desde então.

Márcio Mattos

Fique


Alguma vez em sua vida você já sentiu que uma pessoa seria capaz de tocar seu coração inteiramente quebrando barreiras de preconceito e conceitos sociais baseados numa visão minimalista de quem nós somos por fora? Alguma vez sentiu que alguém poderia estar do seu lado te amando por querê-lo bem?
Meu querido amigo, eu somente quero seus sorrisos e suas piadas arrogantes como sinal de sua terna felicidade simples e verdadeira. Não quero nada mais que seus momentos de sono em paz. Os céus brilhando para você na janela de seu quarto ao amanhecer e o vento formigando-lhe o rosto enquanto caminha pela cidade, pela manha. Que saiba saborear o gosto do pão e sentir a doçura do leite quando acordar. Que possa encontrar energia e animo numa xícara de café. Que estes sejam os momentos mais felizes de seu dia para que você tenha fé de que tudo vai estar sempre bem.
Mas gostaria também que eu pudesse estar feliz também. Eu gostaria de cobri-lo antes de dormir. Protegendo-o do frio e deixando confortável para sonhar seus melhores desejos. Eu gostaria de abrir as janelas e convidar o sol para te levantar da cama sem perder o aconchego do calor que te dei na noite passada. Eu quero preparar seu café, ouvir suas idéias e expectativas pro dia que vai enfrentar. Eu gostaria de não saber de você enquanto nos perdemos na rotina profissional para quando chegasse de novo ao lar eu pudesse abraçar-lhe forte e servi-lhe um jantar surpresa.
Ouvi-lo mais uma vez e contar-lhe meus novos segredos. Pra nos apaixonarmos mais uma vez antes que o dia acabasse nos enrolando em lençóis de carinho. Antes que eu pudesse me esquecer do que sinto dentro de mim.
Eu gostaria de vê-lo cansando-se enquanto nós esperamos pelo nosso descanso no futuro. Pegando retratos e lembrando daqueles dias de gloria em que nós ainda tínhamos o vigor de almas jovens. Dessa época que eu só poderia trazer de volta suas xícaras de café, seu jornal matinal e seus abraços na hora de dormir. Como se eu pudesse chamar nosso amor de eterno. Felizes para sempre, talvez.
Eu gostaria de me entregar a isto agora que o vigor ainda me enche os pulmões. Ainda que eu possa correr nas tardes ensolaradas da minha juventude. Tenho vontade de correr até você e dizer-lhe um milhão de coisas que eu tenho prendido no meu peito queimando a minha garganta e pulsando meu coração. Quase o sinto pulando fora do meu peito e explodido nos céus como um foguete.
Eu gostaria de me salvar do infortúnio possível de não tê-lo nos meus braços no futuro. Sinto que preciso correr e puxa-lo de volta para mim antes que atravesse as montanhas e nunca mais volte. Sinto que posso dizer que te amo. Ou posso estar simplesmente apaixonado. Mas sinto que se estivesse ao seu lado. Não importaria, seria feliz e não me perguntaria se faria sentido ou não o mundo ser mundo.
Márcio Mattos

Perdição


Aqueles murmúrios de amor do quarto ao lado me incomodavam tanto que mesmo entrando de cabeça no relato de Nuria Monfort sobre o desaparecimento de Julian Carax e suas obras queimadas não fui capaz de me concentrar. Eu estava a algum tempo sofrendo daquele que todos conhecem bem e não precisa ser citado aqui e agora. Eu fui deixado no quarto sozinho depois que alguns de meus colegas partiram de ódio. Esqueci as janelas abertas. Lá do meu quanto, no andar mais alto da casa de frente para os céus pintados de azul marinho e com pinceladas de branco ou cinza acabei adormecendo com aqueles sonhos que mais me pareciam pesadelos agora.
Eu dormia sóbrio dos sofrimentos e mesmo que inconsciente descansava sabendo o que o próximo dia me aguardava. Quando o despertador me alertou que o dia me começava abri meus olhos de bom grado. Não havia sono e tampouco mal estar. Contudo fiquei ali deitado de olhos fechados por aproximadamente vinte minutos. Quando retomei a postura de ser me levantei da cama tomado por um branco fantasmagórico que vinha das janelas que dormiram abertas comigo. Naquela madrugada eu havia, varias vezes, acordado e as olhado atento por segundo antes de ser tomado pelo sono novamente.
Toquei a janela com os olhos e vi a cidade tomada pelos fantasmas que se sentiam a vontade deitados sobre os telhados de barro que carregavam uma historia pesada.  Eles se moviam como fumaça e não se importavam se eu estivesse olhando-os nos olhos. Diziam-me algo em silêncio como se sentissem a minha dor somente no olhar. E ali ficaram leves sobre a cidade adormecida que tomava os primeiros raios de luz de um sol escondido por de trás das nuvens grandes e assustadoras.
Despi-me defronte um espelho grande. Onde pude ver mais que algumas costelas sobressalentes na minha pele. Nos meus olhos encontrei um eu acusador que me fuzilava com perguntas que eu sabia que escutaria em algum lugar, mais cedo ou mais tarde. 
“Porque você achou que ele estaria contigo criatura? O que passou pela sua cabeça levando a pensar que ele veria algo de bom nisso aqui? Onde foi que você aprendeu a mentir para si mesmo a ponto de acreditar que vocês poderiam estar juntos?”
Escutei cada palavra do meu reflexo parado. Enquanto eu segurava meus punhos de medo e vergonha. A pele das maças de meu rosto tremia e minha visão foi se perdendo. Eu não notava a força que fazia para não chorar e ao mesmo tempo encarar meus olhos no reflexo. O brilho foi se perdendo e a minha visão se embaçando enquanto as lagrimas se formavam em meus olhos. Abri a boca e um longo suspiro desabrochou meu corpo. Diminui alguns centímetros quando me fechei com vergonha de mim mesmo. Ou dele, aquele garoto que eu havia visto a minha frente alguns segundos atrás. Aquela criança mais ou menos feia. Mais ou menos razoável.
Eu passava pelas fases do sofrimento tão rápido que debaixo da água quente daquela manha eu passei a pensar que algo em mim mudava com o tempo. A cada vez que acontecia eu superava mais rápido e a cada vez eu tinha menos reações. Chorava sem lagrimas ou sussurros. Sofria sem palavras. Sofria de bom grado e com aceitação. Havia algum tempo que eu aceitara em fim que aquele meu criador me impediu de ser amado. E me brotou um amor brutal. O qual me come por dentro. Corroendo tudo o que vê pela frente. E eu sinto que meu coração esta esfriando. À medida que a paixão me queima. Sinto que a cada dia perco um pouco do meu romance. Estou morrendo.
Márcio Mattos

Breve Morte


Ele se lembrava mais uma vez daquela bela juventude. Isso acontecia sem sua vontade. De repente ou ouvir uma música, sentir uma sensação, lembrar de alguma pessoa, momento ou alguma pequena coisa daquela época ele caia no túnel do tempo e era sugado novamente para todos aqueles gostos e sensações.
Doía para o pobre garoto ver-se sentado naquele escritório como o adulto que ele sempre teve medo de ser e ainda dizia que não era. Era apenas um jovem, uma criança que não cresceu. Um adolescente que não amadurece. Porém, por fome talvez. Por medo de estar perdido ele estaria ali se perdendo aos poucos. Como todos os seres humanos fazem quando deixam a inocência de lado e partem para luta com seus ternos e maletas. Ele estava ali dentro apodrecendo aos poucos a felicidade daquela juventude e chorava ao recordar as tardes ensolaradas que voltava para casa da escola. E como ele mesmo dizia: “Não me lembro de um dia sequer que tenha chovido!”.
Pois eram assim as coisas daquela época. No máximo se preocupava com a escola e nem isso. Nem tanto assim o preocupava. Quem saberia que um dia seria mais importante do que parecia?
Ele era como um conto de fadas que um grande animador contava em filmes belíssimos apresentados diretamente ao publico infantil. Era como se nunca fosse crescer. Ele sabia que esse dia chegaria, mas temia-o com todas as forças de seu ser. E hoje somente sabe ver o mundo como uma prisão de cegos adultos. Infelizes rondando pelas ruas de sua pequena fuga. Perto de casa sentindo-se do outro lado do mundo. Ainda sem crença nenhuma na realidade que o dominava dia e noite. Que consumia seus dias a fio como se não importasse ficar deitado o tempo todo naqueles cobertores. O que mudaria? De qualquer modo não fazia menor importância visto que a vida já havia lhe tirado o prazer e o sentido de viver. Foi então que ele notou que era esse o momento que se tornava adulto e a partir de então a espera era somente uma: A morte.

Márcio Mattos